Precisamos falar sobre a Escravidão

O quadrinho questionando a dívida histórica foi um dos memes que apareceram em minha timeline no Facebook, não consegui encontrar o autor (caso saiba por favor deixe nos comentários). Já as reações dos Historiadores ao quadrinho foram adicionados por mim.


Em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel assinava um documento dando fim oficialmente à Escravidão no Brasil, sendo um dos últimos países a fazê-lo ainda no século XIX. Muito se fala sobre a escravidão nas redes sociais. Em meio a quadrinhos, memes e até ofensas raciais, percebo uma enorme lacuna para entender o que de fato foi a escravidão e quais consequências são sensíveis até os dias de hoje.
Primeiramente é necessário esclarecer que ao falarmos em Escravidão não é possível se referir a um processo simples, único, descolado do seu contexto local. Na verdade, ao estudarmos esse tema, é necessário fazer recortes temporais e espaciais para realizarmos nossas pesquisas, em vista de sua complexidade. Ainda que existam aproximações entre as várias formas de escravidão, não podemos desconsiderar os afastamentos e particularidades que cada período histórico produziu.
Por exemplo, ao falarmos de Escravidão na Grécia Antiga, é preciso ter em mente que se trata de um processo diferente da Escravidão Moderna que aconteceu na América Portuguesa (Brasil Colonial). Este, por sua vez se difere em alguns aspectos da Escravidão na América Inglesa e assim por diante. São formas de explorar o trabalho, mas com características e consequências específicas, frutos de seu tempo e contexto. A partir da leitura de alguns autores, é possível distinguir diferentes formas de exploração do trabalho dependendo da atividade exercida pelo indivíduo.
Por conta disso e do espaço do blog, para este texto, pretendo trazer algumas explicações sobre a Escravidão de maneira mais geral, buscando entendê-la como um sistema que teve modos de operações diversos ao longo do tempo. Isso quer dizer que inexistiu Escravidão em lugares não mencionados? Não, o recorte faz parte do trabalho do Historiador. Para que seja possível a compreensão do fenômeno precisamos delimitar nosso foco em espaços físicos e temporais específicos. Caso você queira aprofundar seus conhecimentos no tema deixarei as referências bibliográficas ao final do texto, são ótimas sugestões de leitura para começar a pesquisar. Comprometo-me no futuro trazer textos abordando casos específicos de Escravidão.
Como já foi dito, não é tão simples oferecer uma conceituação para a Escravidão, por conta da dificuldade em diferenciar os indivíduos que foram submetidos a ela, e às outras formas de subordinação e exploração. Em muitas sociedades, as filhas, os filhos caçulas e as esposas estiveram tão submetidos aos chefes de famílias patriarcais que suas condições sociais não eram tão melhores quanto às dos escravizados. Qualquer que seja a definição de Escravidão deve ser flexível ao ponto de ser capaz de abranger os significados diversos que os agentes históricos de uma determinada época lhe outorgaram, logo, por mais que a escravidão tenha assumido traços mais ou menos universais, suas definições variaram bastante ao longo do tempo. Por isso, o conceito de escravidão precisa se fundamentar na sua historicidade, isto é, nas diversas formas que assumiu e nos significados que cada sociedade e época lhe atribuíram.(SILVA; SILVA, 2010. p.110)
Segundo o antropólogo Claude Meillassoux, “a escravidão é um modo de exploração que toma forma quando uma classe distinta de indivíduos se renova continuadamente a partir da exploração de outra classe”(MEILLASSOUX, 1995 apud SILVA; SILVA, 2010. p.110.). Logo, podemos dizer que a Escravidão aparece quando todo um sistema social se estrutura e se desenvolve tendo como base a exploração de um grupo, busca mantê-lo através da perpetuação, introduzindo continuamente novos indivíduos através do comércio ou da reprodução natural.
Além disso o autor afirma que é necessária uma rede de relações entre diferentes sociedades para que a Escravidão exista, sendo necessária a existência de sociedades que atuem de formas específicas para a manutenção do sistema. Dessa forma, é necessário aqueles que atuem na captura, no escoamento do “produto” e aqueles que consumam tal “produto”. Portanto, percebemos que a Escravidão envolve um complexo sistema que mobiliza um conjunto econômico e social de proporções geográficas bem extensas.
O escravo é definido a partir de um status jurídico, ou seja, diferente de outras formas de exploração de trabalho, é entendido como propriedade do seu senhor, não sendo, portanto, considerado uma pessoa, e sim uma coisa. Porém, é preciso enfatizar que esse aspecto jurídico que define o que é um escravo sempre foi problemático para os juristas de cada época, pois mesmo definido como uma coisa o escravo não deixava de ser uma pessoa. “Pensadores, filósofos, juristas e teólogos, ao longo do tempo, em diferentes sociedades escravistas, debateram arduamente se o escravo era ou não um homem e se a escravidão estava ou não conforme a lei natural.”(SILVA; SILVA, 2010 p.111).
Muitos sistemas jurídicos, como por exemplo o Romano, acabaram por identificar o escravo enquanto coisa, porém com uma face humana ao puni-lo por delitos e por oferecer um mínimo de proteção contra assassinatos e danos corporais intensos por parte de seus senhores.
Segundo o historiador Pedro Paulo Funari os escravos de Atenas (na Grécia Antiga) eram em sua maioria prisioneiros de guerra, que poderiam ser gregos ou “bárbaros” (assim eram chamados pejorativamente os não gregos). Seus descendentes não eram considerados como seres humanos dignos, mas sim como instrumentos vivos.

Dos escravos, cerca de 30 mil trabalhavam nas minas de prata, das quais se extraía metal para armamentos, ferramentas e moedas, 25 mil eram escravos rurais e 73 mil eram escravos urbanos empregados nas mais variadas tarefas e ofícios, permitindo que seus donos se ocupassem dos assuntos públicos.”(FUNARI, 2018. p.41).

Funari afirma que a Escravidão em Atenas possibilitava a participação dos cidadãos na vida pública, logo, a Democracia ateniense dependia da Escravidão. Isso porque enquanto os senhores estavam nas Àgoras participando da vida pública, os escravos estavam produzindo o sustento dos seus senhores.
Delimitar as diferenças entre os grupos dos livres e dos escravos sempre foi um problema para as sociedades escravistas. Em sociedades etnocêntricas, buscava-se capturar e escravizar apenas os estrangeiros, porém isso não significa que esses povos só escravizaram estrangeiros,. Pelo contrário, havia escravos não estrangeiros, porém seu status dentro do grupo era um pouco diferente do status dos escravos estrangeiros. Por essa razão a tendência era escravizar o outro grupo, que de alguma forma se diferenciava do grupo dominante, para isso usavam tatuagens ou estigmas para marcar a pessoa. Para que essa diferença fosse ligada à cor da pele não demorou muito. Entre os Egípcios e os árabes, por exemplo, já se utilizavam as características raciais para além de segregar desqualificar o outro.

Aos poucos, a palavra árabe para designar escravos, abid, foi sendo cada vez mais atribuída aos negros. Também os chineses da dinastia Tang pensavam a escravidão a partir de preconceitos raciais. A pele escura, para os chineses dessa dinastia, era associada à inferioridade. Entretanto todos os estrangeiros de modo geral eram escravizados: os persas eram considerados negros pelos chineses, e estes escravizavam ainda os turcos, indonésios e coreanos.”(SILVA; SILVA, 2010. p.112.)

Os historiadores Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva afirmam que desde a expansão do cristianismo, a escravidão foi associada ao pecado. A Igreja Católica (do período Medieval) acreditava que a escravidão se originou na queda do homem, sendo assim ela era peça fundamental para a ordenação do mundo e constava no projeto divino de salvação dos homens. Embora tenha pregado a necessidade de um tratamento mais humano aos escravos, o Cristianismo até o século XIX não defendeu o abolicionismo ou destruído a base ética da escravidão concebida na Antiguidade.
Durante as primeiras navegações, a Igreja apoiou a escravidão através da bula papal Dum diversas, de 1452, concedendo aos portugueses o direito de atacar, conquistar e submeter pagãos e sarracenos, possibilitando a tomada de seus bens e a submissão à escravidão. Já a bula Romanus pontifex, de 1455, ampliou o espaço territorial de atuação dos portugueses incluindo o Marrocos e as Índias. Outras bulas foram emitidas, ratificando ou ampliando os poderes concedidos aos portugueses no sentido de converter homens à fé católica, escravizá-los e comercializá-los.
Segundo os historiadores Sheila de Castro Faria e Ronaldo Vainfas, a fonte legal da escravidão moderna foi o direito romano, perdurado durante a Idade Média, na qual fazia distinção tênue entre a escravidão e servidão. “Tanto é que a palavra latina servi designava tanto os escravos como os camponeses dependentes das relações feudais e, mesmo na Época Moderna, escravidão e servidão eram expressões intercambiáveis em muitos textos”(FARIA; VAINFAS, 2001. p.205.) Por isso, ressaltam que a Igreja sempre apoiou a escravidão, ainda que desaprovasse as formas extremas de apresamento e condicionasse o cativeiro à cristianização.
A contradição na postura da Igreja durante o processo de colonização nas Américas é visível, mostra que nem sempre sua visão sobre certos assuntos foi única e igual entre todos de que dela faziam parte. Ao mesmo tempo que ela permitiu a escravização de povos específicos, proibiu a escravização de outros. Como foi o caso dos povos e civilizações encontrados nas Américas. Padres de várias ordens lutaram de todas as formas possíveis para tentar proteger os indígenas. Muitos padres foram perseguidos e até assassinados nas colônias por serem contra a escravização dos indígenas. É necessário destacar que reconhecer o apoio da Igreja à Escravidão não tem por objetivo desmoralizá-la ou fazer um julgamento moral. Não cabe ao Historiador tal função, mas cabe a nós tentar compreender como o sistema da Escravidão foi tão bem-sucedido e o que contribui para esse sucesso e, neste caso, o apoio da Igreja foi um fator que auxiliou, mas ela sozinha não é a responsável.
Sobre as consequências da Escravidão, o pesquisador Alberto da Costa e Silva no recém-lançado “Dicionário da Escravidão e Liberdade”, ressalta que a Escravidão que aconteceu durante quatro séculos nas Américas mostrou-se especificamente mais perversa que a sua antecessora na Antiguidade, pois os seus efeitos foram prolongados aos descendentes dos que foram escravizados.

Se em quase todas as sociedades se discrimina e socialmente se exclui, humilha ou rebaixa quem tem antepassado escravo, este podia em muitas delas – em Roma, por exemplo, ou em Axante, ou no Mali – conseguir esconder sua origem, porque cativo e homem livre não diferiam na aparência. No caso americano, isso não era possível, porque escravo era sinônimo de negro. E, por isso, nas Américas, os negros herdaram o retrato impiedosamente falso de que o escravo, quase sempre branco, se fazia na Antiguidade Clássica. O ateniense, que, para poder dedicar o melhor de seus dias aos debates na ágora, dependia do escravo, acoimava-o de indolente, mentiroso, estúpido, ingrato e dissimulado.”(SILVA, in SCHWARCZ, 2018.pp. 14 e 15.).

Ainda segundo o pesquisador, mesmo sabendo poucas informações sobre as formas de escravidão da Grécia Antiga pode-se, contudo, intuir que não foram as mesmas formas que prevaleceram, por exemplo, nos cafezais brasileiros. Sendo possível no mesmo espaço geográfico o sistema mudar e se adaptar sob condições específicas de cunho político, econômico e social.
Portanto, para o objetivo deste texto, podemos concluir que a Escravidão tomou diferentes formas ao longo da História e também produziu resultados e consequências específicas em certas localidades e que são sensíveis até hoje. Por mais que tenha existido Escravidão em outros lugares no mundo, que vários povos foram escravizados, não podemos esquecer que tais sistemas geraram consequências diferentes e que devem ser escutadas caso a caso. Não podemos generalizar e devemos estudar, pesquisar e compreender cada ocorrência de acordo com a sua experiência local. Logo, o caso da Escravidão nas Américas tem que ser estudado levando em consideração as suas especificidades locais e as consequências que foram produzidas para aqueles indivíduos daquela região. A segregação racial, o Racismo e as diferenças sociais existentes entres brancos e negros nessa região são consequências de séculos de exploração do trabalho e de desvalorização da identidade e da cultura negra. E deve ser compreendido como caso específico, mas que também está atrelado a um processo mais amplo, de proporções continentais.



Referências Bibliográficas

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. 6ª ed. São Paulo: Contexto, 2018.

SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. 3ªed. São Paulo: Contexto, 2010.

VAINFAS, Ronaldo (dir). Dicionário do Brasil Colonial – 1500-1808. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio. (orgs). Dicionário da Escravidão e liberdade. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.




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